sexta-feira, 10 de setembro de 2010

COLAGEM

No dia 03/10/2010 completarei 4 anos de Itália. Sim, 4 anos... quase meia década! Em Setembro de 2006 passei o rodo em Fortaleza, embarquei em Outubro e a família em Novembro. Motivo: SONHOS.

Para comemorar a data, resolvi fazer uma "colagem" das diversas fases de uma "vida cumprida a só". Vale a pena correr atrás dos sonhos? Eis o meu testemunho.

Infância:
Vivida em um distante paraíso amazônico, reino da liberdade, rodeado de livros que eram lidos com prazer, geralmente aumentado por meio pão com manteiga e açucar. Devido a um problema de saúde no ouvido direito ao qual me submeti a 3 cirurgias, uma das quais no Rio de Janeiro, não pude participar das muitas brincadeiras de rua com meninos da mesma idade, mas a proximidade com a Zona Franca de Manaus me permitiu haver brinquedos incríveis que não esqueço: Autorama Emerson Fittipaldi, Estação Lunar, Skate Hang-Ten de fibra de nylon, uma pipa de pano e bambu enorme que eu não podia empinar, pois os garotos com papagaio de papel e fio encerado eram feras e a derrubariam em um piscar de olhos, um robot que andava e girava 360° atirando com metralhadoras iluminadas escamoteadas em portas que abriam e fechavam no peito, um avião movido a pilha com barulho de turbina que andava no chão, parava, piscava luzes nas asas e partia novamente, um navio também movido a bateria, perfeito em todos os detalhes, que eu brincava com meu pai em uma fonte da cidade e, melhores de todos, carrinhos de ferro Matchbox "Made in England" que, infelizmente, não existem mais, pois são atualmente fabricados na China e não chegam nas calotas dos originais. Tive uma coleção incrível! Construia estradas e brincava no muro de um terreno baldio que tinha na frente da minha casa. Hoje essas miniaturas valem boa grana no e-bay. Infelizmente não me sobrou nenhuma.


Mais. Coleção completa dos Manuais Disney, cujo preferido era o Manual do Escoteiro, que ensinava sobrevivência na selva e alguns truques interessantes. Walk-Talk para brincar de polícia e ladrão, com o suporte de excelentes revólveres de espoleta na cintura, bicicleta e tantos outros que fizeram minha infância realmente muito feliz na companhia de alguns amigos e minhas 4 irmãs que, na ausência deles, eram obrigadas a brincar comigo. Não entendo até hoje como sobrevivi, pois fora desse mundo aparentemente seguro, enfrentei perigos na rua andando em cavalo que encontrava pela estrada, pegando carona em carroceria de pick-up para chegar até a escola, desafiando ladeiras com bicicleta e skate e outras travessuras.

Nasci no dia 01/05, dia do trabalho e do trabalhador. Desde a idade de 10 anos meu pai sugeriu que eu trabalhasse. Assim, na tipografia dos Franciscanos, junto com outros garotos da mesma idade, iniciei minha vida de trabalhador e nunca mais parei. 

Nesse período, iniciou o contato com a MÚSICA, que dura até hoje.


Adolescência:
Quando completei 12 anos e estava para iniciar o 2° grau (sim, com 12 anos eu já estava lá, o que era uma pena, pois todas as garotas da minha classe eram mais velhas que eu), aceitei de livre e espontânea vontade a proposta de meus pais para estudar em um internato em Pernambuco. Ali passei 3 anos felizes, frequentei um excelente Conservatório, terminei o 2º grau e retornei para Belém. Fiz cursinho e, com 17 anos, vestibular para Administração. Passei. Me formei com 21 anos. Início da fase adulta.

Internato: se trabalhava para completar o pagamento dos estudos.

Adulto:
21 anos! Enquanto fazia Administração, trabalhava como estagiário no BASA, aprovado que fui em concurso público, e estudava Piano e Regência de Coro no Conservatório Carlos Gomes. Passava pelo menos 4 horas por dia trancado em uma sala de música. Resolvi que gostaria de trabalhar com Recursos Humanos e, para isso, era importante o curso de Psicologia. Fiz o bacharelado em Belém. Terminei junto com o Conservatório, quando tinha mais ou menos 26 anos. Durante esse tempo sempre trabalhei. Dei aulas particulares de música, dirigi a parte musical em peças de teatro onde conheci minha esposa e com a trupe viajamos e nos apresentamos pelo Brasil, fiz o projeto VARIASONS, cuja história o escritor paraense Ismael Machado registrou no livro "Decibéis sob Mangueiras", integrei uma banda como tecladista e, com esse grupo, participei de festivais universitários de música.  A gente tocava pop-rock e a preferência do júri na época, não sei hoje, era pelo pau-e-corda, carimbó, cobra-grande, essas coisas. Depois me vinguei quando me convidaram para integrar o outro lado como jurado e apresentador de festivais do SESC para a TVE local. Participei como co-piloto de pegas na Augusto Montenegro, das pipocas do Círculo Militar, como espectador do Lapinha, na Condor e apreciador de heavy-metalprogressivo. Fã da Rita Lee, tive praticamente a coleção completa de discos até o momento em que ela decidiu casar e pasteurizar a música para vender mais.

Estive em Nova York, na New York University, onde meu "curriculum" musical e acadêmico havia sido aprovado para Mestrado em Musicoterapia. O CNPq negou a bolsa. Não interessava esse curso ao país, foi a resposta que recebi. Escrevi ao Governador do Pará na época contando a odisséia e dele recebi uma passagem aérea que me permitiu ir lá como aluno-ouvinte, inclusive dos ensaios e serviços do Coro da Catedral de St. Patrick. Meu Inglês era aquele aprendido no IBEU. Depois, fiz um curso livre de Musicoterapia na Universidade Estácio de Sá, em Fortaleza, devidamente certificado.


Dos meus pais tive como apoio, em casa, um quarto, comida e ajuda no pagamento dos estudos. Não é pouco. A eles, minha eterna gratidão pela maior riqueza que deles herdei: Educação. Será também esta a herança dos meus filhos.

Passada essa fase onde fumei e bebi todas (com moderação), arrumei as malas e estava partindo para Curitiba, terra da música, quando a Profa. Glória Caputo, então diretora do Conservatório Carlos Gomes, me indicou para dirigir uma escola de música em Fortaleza, pois eu já dirigia algumas particulares em Belém. Aceitei. Casa, comida, bom salário... lá fui eu, ainda solteiro. A realidade era muito diferente da prometida, mas não desisti. Em Fortaleza concluí a formação em Psicologia, com especialização clínica (Freud, gênio como Bach, Mozart e Beethoven). 2 anos foi o tempo necessário para me ambientar e abrir minha própia escola de música. Casei, nasceram meus filhos, regi diversos corais, fiz trabalhos de gravação, produção etc. que sustentaram a mim e minha família por 15 anos, até o momento em que meus filhos se aproximaram da idade limite para entrar em Conservatórios oficiais na europa, meu verdadeiro sonho.

Dos ENTA em diante:
Que sonho! A quem poderia contar sem ser imediatamente internado em um hospício? Bem, de vez em quando penso que nossos caminhos nesta vida têm algo de misterioso. Por pelo menos dois anos pesquisei, estudei e troquei informações com pessoas e amigos espalhados pelo mundo. Porém, fatos aconteceram em uma sequência impressionante que conduziram ao ponto, como, por exemplo, um maestro italiano que viu o site da minha escola na Internet e me visitou em Fortaleza. Um intercâmbio de informações musicais teve início e se concluiu com minha vinda para a Itália.

No coração de Fortaleza: Praia de Iracema

Outros fatos mais interessantes ainda, que pela inexplicável sequência chamo de "milagres", contarei, se tiver tempo, em um livro.

Vendi nossa casa em fase final de construção, nossos carros e tralhas. Me despedi dos meus alunos e grupos pedindo um prazo de 6 meses de tolerância. Se eu não voltasse nesse tempo, estariam livres para me defenestrar. Parti.

Despedida da família no aeroporto de Fortaleza.
O ratinho na mão da minha filha é um ser vivo.

Teminado o intercâmbio, era hora de voltar, mas eu não queria voltar. Fazer o que em Fortaleza que nem Conservatório tem? Não! A cidade me ofereceu o máximo profissionalmente, sou grato, porém, conhecendo a realidade musical local e chutando longe a modéstia, retribuí muito bem. Quite, era chegado o momento de virar página, encerrar etapa e seguir adiante.

Assim, com mais de 40 anos de idade e dois filhos pequenos, era preciso iniciar DA CAPO. Por sorte, minha companheira tem espírito aventureiro como o meu e topou enfrentar a nova realidade com muito suor e trabalho, cujos detalhes estarão também no livro, pois os primeiros 2 anos em país estranho são trituradores de nervos e vísceras. Sem conhecer absolutamente ninguém, enfrentamos Roma com as nossas economias em Real, que, quando convertidas em Euro, valiam 3x menos na época. Outra sequência de fatos incríveis aconteceram. Enquanto os contatos de religiosos católicos que trouxemos depois de anos de trabalho voluntário em paróquias no Brasil pouco ou nada serviram, encontramos, por absoluto acaso, pessoas certas (algumas sem religião) que nos conduziram pelos caminhos certos. Coincidência? Destino? Sorte? Sei lá! Sei apenas que continuo amando a Igreja, independente dos seres humanos que nela estão inseridos.

Chegada da família em Roma

Passado esse tempo de prova fomos entendendo a dinâmica, o funcionamento da mente nativa e, como é característico do ser humano, ocorreu, no nosso caso, a adaptação.

Ah! E o sonho?! Pois é. Realizado em 2007. Não. Não foi apenas um sonho realizado. Foram vários!

Tudo bem, o primeiro e mais importante foi este pelo qual saí do Brasil, mas nunca contei antes a ninguém. Até mesmo minha mulher só soube quando já estava na Itália. Não queria me divorciar dela como louco varrido, pois ela me conheceu apenas como louco.

 
Meu filho no Coro Cappella Sistina - Vaticano


Mas teve mais. Em menos de 3 anos na Itália, eu e Marta conseguimos o que não conseguimos em mais de 40 no Brasil: emprego a tempo indeterminado com carteira assinada, férias, estabilidade, assistência sanitária e todos os direitos que tornam dignos os seres humanos. Os bens materiais já recuperamos praticamente todos, alguns até de melhor qualidade. No Brasil eu tinha bons trabalhos, mas, como profissional liberal, se não trabalhasse, não comia. Não podia adoecer nunca! Férias? Nem pensar! Não culpo o país. Culpo a mim, que não tive QI (intelectual e político) para focar a vida, pois sempre a vi através das lentes multifocais dos meus óculos. Achei que seria pouco conhecer apenas notas musicais. Gosto de Freud e das técnicas da Psicanálise, dos esquemas CPM-PERT de Administração. Mas precisava estudar tanto para isso? Tenho um saco repleto de diplomas que pouco ou nada serviram para ganhar dinheiro. O melhor de todos, por incrível que pareça, foi e ainda é o de MÚSICO. Verdade! As vezes que me ofereceram trabalho em departamento de RH como Psicólogo, o salário era menor que o de Maestro de Coro e com muito mais horas. Tem lógica. A oferta do primeiro profissional é maior que a demanda. Dou um exemplo. Psicólogo: 8 horas por dia, 5 dias por semana, salário X. Maestro: 2 ensaios por semana com duração de 1 hora e 1/2, salário 2X. Tenho isso registrado na minha carteira de trabalho.

Este ano, entretanto, depois de realizados todos esses sonhos, adoeci. O que houve entre meu cérebro e meu corpo? Me apresentaram a conta de uma vida desregrada? Talvez o primeiro tenha feito a seguinte pergunta: E agora, acabou? O segundo deve ter respondido que sim. Está um pouco velho e cansado. Calma lá! Id, Ego e Superego, vamos reorganizar as coisas. Tenho 47 anos e novos sonhos!

A pergunta final: VALE A PENA SONHAR E TENTAR REALIZAR OS SONHOS? A resposta clichê é: "Sim, claro! Sempre!" A minha é DEPENDE.

1. Eu mudei de país porque tinha documentos em ordem e podia usufruir de todos os direitos como cidadão italiano. Sem isso, recomendo pensar 1000 vezes antes de mudar estrada e território. Como diria Rita Lee, é preciso investir em know-how e apostar no background. Ambos não me fizeram rico, mas facilitaram a realização dos meus sonhos.

2. Para tornar real um sonho, como São Pedro, será necessário caminhar sobre as águas, mas sem perder a fé. A minha foi mística e também no fruto de uma vida de trabalho depositado na conta bancária (poupança). Ambas ajudaram muito!

3. A linha que divide o sonho do pesadelo é tênue. É preciso um belo saco escrotal caso ela se rompa.

Não posso dizer que tive uma vida repleta de grandes emoções. Cada fase que citei é cheia de detalhes que não cabem aqui, mas que pretendo contar caso realmente escreva o livro. Eles sim, fizeram valer a pena cada momento vivido com felicidade que, aliás, cometeria um grande pecado se dissesse que não a conheço. Procurei dividir um pouco em trabalhos voluntários com quem achava que valia a pena, mas acho, hoje, que faltou e falta dividir mais.

Enfim, alguém disse alguma vez, em algum lugar, que ninguém pede para nascer, nem sabe a hora que vai morrer, logo, o importante é aproveitar o intervalo. Isso eu fiz relativamente bem e farei até fechar a cortina.

ITÁLIA: 2006 - 2010

4 comentários:

  1. "A gente nasce sem pedir.
    Morre sem querer...
    O negócio é mesmo: Aproveitar o intervalo!"

    ResponderExcluir
  2. Ferrari, parabens.
    Seu relato me trouxe doces lembranças.
    Você tem uma linda família e uma carreira de sucesso.
    Você nos mostra realmente que sonhar vale a pena.
    Pena que seu investimento de 2 euros não se transformou em milhões rsrs

    ResponderExcluir
  3. emocionante ...
    obrigada pelo seu relato! aprendi muita coisa aqui
    beijo grande na família!

    ResponderExcluir
  4. Amei ler o seu texto. Bem escrito e delicioso. E me fala uma coisa: como NÃO sonhar?
    Ah, vou esperar o livro, viu?
    Bjo.
    Ruth

    P.S. Assim como este, li hoje tb todos os textos do mes de setembro. Aprendi muito, "conheci" lugares, ainda estou confusa com as graviolas e estou esperando a sua invenção, devidamente patenteada e que traga lucros bem superiores àquele prêmio da loteria italiana
    que, pelo visto, vc não ganhou rss

    ResponderExcluir