quinta-feira, 26 de novembro de 2009

LAISSEZ-FAIRE

Você consultaria um falso médico, um falso advogado ou faria construir sua casa por um falso engenheiro? E que tal contratar um falso músico? Nenhum problema? Talvez. Só que, no caso do músico, o buraco é muito, mas muito mais embaixo.

Eu já pensava em escrever sobre este assunto, mas confesso que o texto publicado recentemente no blog do Dr. Vladimir intitulado “Por favor, respeitem o artista”, me deu uma dose extra de ânimo, sendo que vou tratar mais especificamente do universo musical.

Gostaria de iniciar comentando um particular da profissão “músico”. Existe falso médico, falso advogado, falso engenheiro e falso qualquer outra coisa, mas... existe “falso músico”? O que seria? Um músico que não tem formação acadêmica? Mas a OMB reconhece como músico qualquer um que faça... música(?!?!). E agora, José? Agora entram as Leis do mercado, da oferta x demanda, do forte x fraco, do talento artístico x talento financeiro e assim por diante.

Como um músico profissional, aquele que estudou por anos, que se especializou, que sofreu em busca de um diploma, se fará respeitar quando, no final das contas, para sobreviver, a guerra se dará no tapetão do mercado? Respeito os que conseguem uma cátedra em universidade, conservatório ou qualquer emprego fixo e seguro que permita esnobar outras propostas indecentes de trabalho, mas penso nos que vão para a luta no campo de batalha e lembro o que um dia ouvi de um velho professor. Perguntou ele por qual motivo os carros americanos, no início do mundo globalizado, tiveram enorme dificuldade em penetrar no mercado japones, enquanto os carros japoneses invadiram facilmente o mercado americano. A resposta, em poucas e simples palavras: Os americanos tentaram enfiar na goela dos japoneses aquelas banheiras enormes, obsoletas, com alto consumo de combustível, produto que os japoneses definitivamente não desejavam, enquanto os nipônicos ofereciam aos americanos o contrário, ou seja, carros modernos, mais compactos, porém espaçosos e confortáveis, econômicos, bonitos, enfim, totalmente de acordo com o desejo do consumidor americano. Bingo!

No mundo musical, como atuam essas tais Leis de mercado? Dou como exemplo relatos verídicos vividos por mim em mais de 20 anos de estrada. Não cito nomes, mas todos os personagens existiram de fato.

Trabalhando entre o Norte e o Nordeste do Brasil, qual seria o modo mais fácil e rápido de um músico se afirmar? Na Bahia, tocando com qualquer bloco carnavalesco, afinal, o carnaval lá não acaba nunca; no Pará, nas lambadas da vida; em Pernambuco e Ceará, numa banda de forró, e assim por diante. Bem, eu escolhi, atuando nessas regiões, reger um Coral especializado no repertório sacro de grandes compositores e aquele milenar da Igreja Católica, isto é, com músicas em Latim, canto gregoriano e coisas do gênero, pelo simples fato de nisso me realizar e sentir prazer. Para não radicalizar, em determinados momentos me permiti caminhar por estradas floridas, fáceis e rentáveis, mas no Coral religioso o caminho tinha que ser espinhoso, pedregoso, esburacado, trabalhando com leigos e voluntários um repertório, no mínimo, ousado para esse tipo de grupo. Tudo isso mais as minhas eventuais deficiências técnicas (ninguém é perfeito) tornava o resultado final, para nós e alguns poucos, um êxtase absoluto!

Como esse trabalho era vendido? Dizer que não pensávamos nisso seria mentir, mas, antes de tudo, pensávamos na música que NÃO queríamos fazer. Confesso que, por esse motivo, era vendido com a técnica dos americanos contra os japoneses. O cliente ouvia o Coral, se aproximava e perguntava se era disponível para cantar uma determinada Missa (aniversário, 7º dia, casamento etc.). Eu respondia que sim. Se a conversa ia adiante, eu apresentava a lista com as músicas do nosso repertório e dizia para escolher entre aquelas. Quando a pessoa não sabia exatamente o que estava comprando, iniciava a ladainha. - O falecido gostava da música tal; o aniversariante daquela; a noiva daquela outra... não tem na lista. - Sinto muito. O Coral só canta o que está aí e música popular não entra na igreja com o nosso grupo. 90% das vezes a conversa terminava ali.

Convém dizer que o valor cobrado era outro fator de rápida desistência dos não habituados ao tipo de música, quase sempre figuras que gastam fortunas com comida e bebida e querem a música, se possível, de graça.

Parênteses aqui. Meu grupo não se movia sem ter garantido antecipadamente transporte de ida e volta. Diz o ditado: “Fim de festa, músico a pé”. Na hora de buscar é uma beleza... depois que acaba, viola nas costas e pé na estrada. Ne-ga-ti-vo, cara-pálida! Paga antes ou nada feito.

Aos 10% que conheciam o repertório, era dar o preço e fazer o trabalho. Quem sabia o que queria e estava comprando concordava com tudo e pagava sem pechinchar e com tranquilidade. Assim, para estes últimos, fizemos Missas memoráveis, explêndidas, maravilhosas, porém poucas se comparados nossos números com os daqueles que vendiam o que o mercado queria comprar. Entre estes, músicos diletantes mais baratos que banana em fim de feira.

O caso mais interessante envolve uma família da qual fui professor de música. Pouco tempo. 6 meses, mais ou menos. O que dá pra aprender em 6 meses? Os nomes das notas? A leitura das duas claves? Quase nada. Foi, porém, tempo suficiente para o que segue resumidamente.

O pai, formado em Direito, logo, Advogado (mesmo!), antes de estudar comigo tocava Missas aos domingos com um violão, ajudado pela esposa que cantava. Começou a ganhar mais dinheiro que no escritório de advocacia. Fechou o escritório e resolveu investir na música. Iniciou os estudos de Teclado e Teoria, comprou os melhores equipamentos e instrumentos musicais. A voz da mulher que era um fio, um nada, virou um vozeirão alterado por modernos equipamentos. E, assim, sem saber quase nada de música, ele ganhou muito dinheiro, pois sabia como poucos programar o Teclado que tocava sozinho enquanto ele “dublava” tocando nas teclas mudas. Vigarice? Quem se importa!? O resultado era, aos ouvidos de quem pagava, maravilhoso! Lá estava a música que o morto gostava... a preferida do aniversariante... da noiva... e assim, de maneira inteligente e competente, diga-se bem, ele montou uma empresa especializada em eventos, comprou carros para transportar os equipamentos, treinou o filho para assumir compromissos quando a agenda estourava e se afirmou no mercado. Dizia ele que cobrava x, mas se o cliente oferecia meio x ele ia, pois, se ficasse em casa parado, outro pegaria aquilo e ele nada. Está errado? O que tinha a perder? Nunca estudou música seriamente. A música era praticamente um passatempo rentável (sim, um advogado pode ser músico a qualquer momento, trabalhar e ganhar dinheiro como tal; o músico não pode ser advogado, médico ou engenheiro nas horas vagas, por mais conhecimento que tenha em qualquer dessas áreas, se não tiver um diploma e autorização da Ordem dessas categorias). Ele agiu como os japoneses no confronto dos americanos.

Resumo da Ópera. Mesmo que o cara não saiba fazer um dó central na clave de sol sentando nu na areia (para quem não sabe, esse dó tem o formato de um círculo atravessado ao centro por uma reta, como o planeta Saturno, mais ou menos, dependendo do ângulo dos anéis), se ele organiza bem os sons e o silêncio, ainda que toque Teclado com 3 dedos pé-de-galinha, é considerado músico e pode obter a carteira da Ordem dos Músicos do Brasil igual a que possui o John Neschling. Isso não é ruim, afinal, entre os analfabetos musicais temos, entre tantos, Djavan.

A arte e o talento independem de papéis, de diplomas, de estudos, mas, como tudo no mundo capitalista, também estão sujeitos às Leis do mercado. Se fazer respeitar ignorando essas Leis não é tarefa das mais fáceis. Que o diga o Lobão. Caetano gravou Peninha. Caprichou na maquiagem daquilo lá, mas a essência foi e sempre será de um brega das luzes vermelhas da Condor. Se não me engano, foi a primeira vez que ele ultrapassou 1 milhão de cópias vendidas. Titãs, quem diria, depois dos bichos que saiam dos esgotos, produziram música para elevador. E por aí vai. É preciso pagar as contas, comer e viver.

Só a educação de um povo pode mudar o conceito sobre o que vem a ser arte e o respeito por quem a produz.

No dia 22/11 foi comemorado o Dia do Músico e de Santa Cecília, padroeira da música e dos músicos. Diferente dos demais profissionais amparados por Ordem de categoria, sindicato etc., o músico precisa, mais que qualquer outro, de proteção do alto, pois trava uma guerra diferente com novas tecnologias, novos concorrentes e principalmente com uma antiga regra de mercado livre do capitalismo selvagem: “laissez faire, laissez aller, laissez passer”. Salve-se quem puder... deixa fazer... deixa ir... deixa passar... deixa rolar... the show must go on... “laissez-faire”. Que se ferre!

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